segunda-feira, novembro 24, 2003

O que é nosso jamais deixará de o ser

Há medos que são pura perda de tempo. Todos os medos o são, embora sirvam a função de nos ginasticar no combate à  inutilidade de muita coisa. A face positiva: se tiver medo, penso muitas vezes antes de fazer o que pode ser uma grande asneira. A face negativa: cedo ao medo e deixo de viver coisas importantes para mim.
Não estou aqui a filosofar sem causa definida. Estou a falar de uma espécie de medo que tenho lido em bloguinhos vizinhos. O medo de ser gay, homossexual, lésbica, etc.
Na altura em que conheci a minha primeira namorada, o medo de assumir era diferente. O isolamento era maior, não se falava tanto na homossexualidade como agora, não havia tantos espaços dedicados à comunidade, nem tantas notí­cias na comunicação social.
Mesmo assim, subsiste o medo. Olhando para trás, há mais de vinte anos, entendo que o medo fazia mais sentido nessa altura. Hoje, com toda a abertura já existente sobre o assunto, custa-me bem mais entender os medos de quem, mais novo do que eu mas com outras perspectivas, com outra abertura e outra informação, se deixa arrastar para esse território de ninguém que é ceder a preconceitos que são muito mais dos próprios do que dos outros.
Nunca se pode agradar a gregos e a troianos. Há sempre pessoas que não gostam do caminho que escolhemos, da forma como vivemos e por aí­ fora. Os nossos pais sofrem sempre a surpresa de descobrir que os seus filhos não são exactamente como imaginaram que podiam ser. Mas os pais são pessoas crescidas e perfeitamente capazes de lidar também com as suas escolhas e com as suas expectativas.
Haverá sempre pais que não gostam que os filhos sejam contabilistas em vez de médicos, que sejam divorciados em vez de exemplares pais de famí­lia, que vivam numa aldeia onde se estão a perder em vez de viverem em Londres e tirarem partido de todas as suas reais potencialidades. Haverá inclusivamente pais que gostariam que os filhos tivessem os caracóis louros dos avós, dos tios, da parte mais bonita da famí­lia.
Durante uma vida, haverá sempre razões de sobra para qualquer ser humano normal se sentir contrariado porque nem tudo lhe corre de feição.
Como haverá sempre quem prefira viver com intensidade as restrições impostas pela vontade dos outros e não o que a sua vontade dita.
Há vinte e muitos anos era mais provável que isso acontecesse. Mas hoje...?
Já há vinte e tal anos (nem estou a dar como exemplo homens e mulheres que, noutras épocas bem mais perigosas e menos esclarecidas, fizeram o que o coração lhes ditava) havia quem escolhesse agradar a si próprio, manter relações com pessoas do mesmo sexo, sair de casa, enfrentar a famí­lia, viver os seus amores em meios muito pouco favoráveis, sofrer o isolamento, a crí­tica e até o medo, mas ser feliz com quem amava.
Ser feliz e fazer aquilo que se acredita ser tanto um direito nosso como outro qualquer.
As paixões anti isto e aquilo também passam, as pessoas também se habituam a respeitar a coragem das outras e tudo volta ao normal, mais tarde ou mais cedo.
Se, por acaso, escolhemos não viver por medo dos outros, com que cara ficamos depois de tudo voltar ao normal?
A que propósito desperdiçamos os melhores anos da nossa vida, os maiores entusiasmos, a alegria de viver com quem e como queremos? E serão os outros tão culpados assim da nossa infelicidade? Que lhes démos em troca? O nosso medo? A nossa reluctância em exercer aquilo de que somos feitos? E que ganhamos? Mágoas, tristeza, saudade de coisas que não voltam?
A vida passa demasiado depressa para ser desperdiçada com medos. Os medos retiram-nos a capacidade de amar e são um duro ónus para a nossa felicidade. Quem é que quer chegar aos quarenta anos a pensar no que podia ter feito e não fez? No que podia ter amado e não amou? No que podia ter partilhado e não partilhou?
Porque é um investimento importante, o de partilhar com os nossos amigos e a nossa famí­lia aquilo que é vital para nós. E um investimento que produz sempre frutos. Que importa se alguns ficam pelo caminho? Com certeza não eram os melhores, com certeza não eram tão importantes assim, com certeza não éramos tão importantes assim aos seus olhos...
Mas a família, os verdadeiros amigos, não preferirão as verdades que lhes contamos, e até impomos, a assistir durante uma vida ao negro espectáculo da nossa cobardia? Às mentiras com que julgamos enganá-los? Quereria eu que uma filha ou uma amiga me mentissem todos os dias quando me falassem da pessoa com quem partilhassem a vida? Quereria eu ser responsável pela traição que implica esconder a verdade a familiares e amigos?
Se há vinte anos poucas eram as justificações que encontrava para mentir nesse aspecto, hoje em dia muito menos encontro. E é-me penoso assistir às dúvidas e receios de quem, como eu e muitos outros, tem tudo para fazer o que lhe vai no coração e desperdiça irrecuperáveis anos de vida em pequenas mentiras de que nunca se orgulhará e com as quais nunca ganhará absolutamente nada, muito menos o respeito de quem ama e por quem quer ser amado.

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