terça-feira, dezembro 23, 2003

Vive e deixa viver

Este post vem a propósito do último das vizinhas Mentes, a quem admiro a habilidade de suscitarem tantos e tão apaixonados comentários com as suas intervenções.

Vive e deixa viver (de vez em quando gosto de acreditar que pratico isto)...
Quando uma testemunha de jeová ou um membro do reino de deus me batem à porta e começam a despejar as frases-feitas do costume, a minha primeira reacção é: ai alminha, então acha que a sua igreja tem o monopólio de deus e da fé? Mas logo me arrependo...
Tamanha é a convicção que põem no que estão a fazer, que de imediato me assaltam toda a espécie de dúvidas: que direito tenho eu de privar aquela pessoa de exercer aquilo em que acredita? que direito tenho me pôr a comparar as minhas dúvidas com aquilo que, aparentemente, é tão importante para ela que a faz sair de casa à noite e no fim-de-semana e arriscar o seu bom humor às pedradas do mau humor dos outros, do gozo, da incredulidade, do pessimismo e da agressividade de quem porventura não esteja para ouvir nada em que não acredite?
Está bem, deixe ficar a revista... Deixe lá, que vou ler tudo. Afinal, também gosto de ser surpreendida...

Há uns valentes anos estive em Colónia e, como não podia deixar de ser, lá fui eu em peregrinação à Catedral, para ver o que resta da fabulosa arquitectura e dos bombardeamentos da Segunda Grande Guerra.
Impressionante, digo-vos, eu que gosto destas coisas.
Logo à chegada dou comigo a olhar para um quiosque da Marlboro, com os seus vermelhos vivos e brancos, um matacão de cimento colado à parede da catedral e à entrada principal.
Caramba, pensei, até em Portugal vetavam este mamarracho!
Entrei, naquela calma que a gente tem nos passeios, a arrastar o olho para todo o lado.
Eis senão quando um imenso grupo de japoneses, de máquina fotográfica incorporada na alma, irrompe pela nave principal e: clique, clique, clique... flash, flash, flash!
De cada vez que um dos dignos representantes do país do sol nascente descobria um motivo de interesse, o grupo todo ia a correr e fotografava afanosamente, corria outra vez, fotografava também, corria, corria, corria, fotografava, fotografava, fotografava...
Se conseguirem imaginar o barulho das sandálias e das exclamações extasiadas, têm o tour completo.
No meio da tontura da vaga nipónica, acerca-se de mim um frade famélico, de hábito castanho, roçado, largo demais, caixa de esmolas na mão e cartaz ao peito: Para a reconstrução da catedral (em três línguas).
Larguei uns marcos, claro, comovida pela causa da arquitectura em perigo, etc., etc., etc.
Fui andando por ali e às tantas, do lado esquerdo da catedral, vejo uma portinha guardada por dois seguranças. Quis saber o que guardavam eles e fui prontamente informada que era uma salinha onde se guardava uma amostra do tesouro da catedral.
Larguei mais uns marcos para entrar, fui convenientemente revistada por um detector de qualquer coisa e passei à dita sala, que tinha, nada mais, nada menos, o dobro da área do meu apartamento de três assoalhadas.
Portanto, nas seis assoalhadas (com varanda, cozinha ampla e despensa), estavam vitrines de tudo o que possam imaginar: baixelas, escudos armaduras, moedas, salvas, espadas e tudo o que costumamos ver nos museus, só que... em ouro maciço.
A sala era uma gruta de Ali Babá, acreditem. E a mim deu-me um ataque de sovinice, daqueles de fazer cálculo mental da quantidade de moedas que tinha posto na caixinha prá reconstrução da catedral...

Adoro o nonsense desta nossa forma de vida...

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