quarta-feira, outubro 29, 2003

Uma história de getos

Quando vivíamos em Varsóvia usávamos estrelas e triângulos na mesma roupa com que saíamos à rua, com que comíamos e com que dormíamos, com que fazíamos amor pelos cantos e com que íamos às latrinas. Uns trezentos e sessenta e cinco dias por ano, às vezes e seis. Quando vivíamos em Harlem não importava o que púnhamos em cima do corpo, porque os niggers têm todos as mesmas fuças, todos iguais, como os amarelos ou os escurinhos ou os inuits. Quando vivíamos em Johannesburg era preciso escolher os assentos os parques e as casas de banho porque os brancos que se enganavam tinham de ser multados por utilizarem as facilities que só podiam ser utilizadas por coloridos. Quando passávamos fins-de-semana com os tios-avós tínhamos de esperar junto das tias e das primas, no meio dos bordados e das canastras que os meninos acabassem de beber conhaque e de fumar charutos para virem dizer-nos como estávamos crescidas e bonitas e qualquer dia casadas com belos e bons rapazes que andavam na escola de tal e se empregavam bem e traziam com eles uma garantia de belos netos em papel timbrado com um selo que nunca estava à vista mas a que toda a gente prestava imensa atenção. Quando vivíamos em Washington DC e visitávamos o Capitólio e todas as fotografias de presidentes eram de homens muito feios, perguntávamo-nos onde raio estariam os retratos das mulheres bonitas, perfumadas e inteligentes. Quando vivíamos na fazenda os capatazes eram capazes de perceber imediatamente por que razão ladravam os cães e rolavam os olhos e emudeciam quando tentávamos explicar-lhes alguma coisa, por estarem mais habituados aos latidos do que às vozes ininteligíveis das mulheres dos patrões. Quando vivíamos nas grandes cidades cosmopolitas e havia surtos de gripe e consultávamos os médicos de ar desenpoeirado, tudo o que não fosse tylenol eram medicamentos para os nervos, uma afecção de que padecem inevitavelmente as mulheres e de que até os médicos desempoeirados ignoram a origem. A história dos getos é ccomplicada, vá-se lá saber porquê... No meu geto não há estrelas, triângulos, cores, roupas, tios, retratos de homens, medicamentos para os nervos. Há afectos que se dispensam parcimoniosamente na razão directa do que nos são dispensados.

1 comentário:

Anónimo disse...
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