terça-feira, dezembro 23, 2003

Vive e deixa viver

Este post vem a propósito do último das vizinhas Mentes, a quem admiro a habilidade de suscitarem tantos e tão apaixonados comentários com as suas intervenções.

Vive e deixa viver (de vez em quando gosto de acreditar que pratico isto)...
Quando uma testemunha de jeová ou um membro do reino de deus me batem à porta e começam a despejar as frases-feitas do costume, a minha primeira reacção é: ai alminha, então acha que a sua igreja tem o monopólio de deus e da fé? Mas logo me arrependo...
Tamanha é a convicção que põem no que estão a fazer, que de imediato me assaltam toda a espécie de dúvidas: que direito tenho eu de privar aquela pessoa de exercer aquilo em que acredita? que direito tenho me pôr a comparar as minhas dúvidas com aquilo que, aparentemente, é tão importante para ela que a faz sair de casa à noite e no fim-de-semana e arriscar o seu bom humor às pedradas do mau humor dos outros, do gozo, da incredulidade, do pessimismo e da agressividade de quem porventura não esteja para ouvir nada em que não acredite?
Está bem, deixe ficar a revista... Deixe lá, que vou ler tudo. Afinal, também gosto de ser surpreendida...

Há uns valentes anos estive em Colónia e, como não podia deixar de ser, lá fui eu em peregrinação à Catedral, para ver o que resta da fabulosa arquitectura e dos bombardeamentos da Segunda Grande Guerra.
Impressionante, digo-vos, eu que gosto destas coisas.
Logo à chegada dou comigo a olhar para um quiosque da Marlboro, com os seus vermelhos vivos e brancos, um matacão de cimento colado à parede da catedral e à entrada principal.
Caramba, pensei, até em Portugal vetavam este mamarracho!
Entrei, naquela calma que a gente tem nos passeios, a arrastar o olho para todo o lado.
Eis senão quando um imenso grupo de japoneses, de máquina fotográfica incorporada na alma, irrompe pela nave principal e: clique, clique, clique... flash, flash, flash!
De cada vez que um dos dignos representantes do país do sol nascente descobria um motivo de interesse, o grupo todo ia a correr e fotografava afanosamente, corria outra vez, fotografava também, corria, corria, corria, fotografava, fotografava, fotografava...
Se conseguirem imaginar o barulho das sandálias e das exclamações extasiadas, têm o tour completo.
No meio da tontura da vaga nipónica, acerca-se de mim um frade famélico, de hábito castanho, roçado, largo demais, caixa de esmolas na mão e cartaz ao peito: Para a reconstrução da catedral (em três línguas).
Larguei uns marcos, claro, comovida pela causa da arquitectura em perigo, etc., etc., etc.
Fui andando por ali e às tantas, do lado esquerdo da catedral, vejo uma portinha guardada por dois seguranças. Quis saber o que guardavam eles e fui prontamente informada que era uma salinha onde se guardava uma amostra do tesouro da catedral.
Larguei mais uns marcos para entrar, fui convenientemente revistada por um detector de qualquer coisa e passei à dita sala, que tinha, nada mais, nada menos, o dobro da área do meu apartamento de três assoalhadas.
Portanto, nas seis assoalhadas (com varanda, cozinha ampla e despensa), estavam vitrines de tudo o que possam imaginar: baixelas, escudos armaduras, moedas, salvas, espadas e tudo o que costumamos ver nos museus, só que... em ouro maciço.
A sala era uma gruta de Ali Babá, acreditem. E a mim deu-me um ataque de sovinice, daqueles de fazer cálculo mental da quantidade de moedas que tinha posto na caixinha prá reconstrução da catedral...

Adoro o nonsense desta nossa forma de vida...

quinta-feira, dezembro 18, 2003

O espírito

Há anos que não preparava um Natal como o deste ano. Não que alguma vez me tenha esquecido de preparar e escolher o que queria dar às pessoas que me importam, nem de enviar votos de boas festas a toda a gente simpática que de mim se lembra durante o ano. Tenho até muito gosto nesta quadra, em que dar significa o mesmo que verificar que há realmente um grande número de pessoas de que gosto muito. Mas os meus natais eram um exercício solitário, passado essencialmente comigo e de mim para os outros.
Este ano, no entanto, a coisa é diferente. Por alguma encantadora manobra do destino aterrei directamente no meio de um grupo de gente adorável que vive o espírito do Natal daquela forma honesta e alegre que apreciamos nos filmes da Disney, onde os milagres e as surpresas agradáveis se sucedem a um ritmo impensável, à mistura com uma música agradabilíssima e comovedora.
E eu, que até este momento suspirava no fim de cada fita e pensava, para com os meus botões, olha, que até era giro viver isto assim, vejo-me agora na dita fita, a planear e alegrar-me com as coisas deste natal à boa e antiga maneira, a falar do Pai Natal e a enfiar prendas em sacos como se fosse a mamã Noël ou coisa assim.
O pior, o grave mesmo, é que ando divertidíssima e não há mal que chegue a afectar-me uma hora inteira, quanto mais um dia ou o mês todo...
Não é obra minha, claro, este espírito natalício que me assaltou assim como quem não quer a coisa. Devo-o a uma pessoa especial, a uma família especial, a um grupo de gente especial. O sorriso que hoje trago comigo é em sua intenção. E eu adoro sorrir, pesem embora as vezes que me esqueço de o fazer.
Este ano é, no entanto, diferente. Este ano a árvore tem sons que me lembram a minha infância, a cozinha voltou a cheirar a canela e a açúcar em caramelo, os armários voltaram a encher-se de presentes-surpresa.
Encanta-me a expectativa espelhada nos olhos das crianças e dos adultos, a cumplicidade, o entusiasmo que sinto à minha volta.
Este ano, os anjos voltaram a descer pela chaminé e eu nem me importo de limpar a sujidade que eles largam na lareira. Virei protagonista de filme-algodão-doce americano e estou a amar cada instante.
Deixem-me, por isso, partilhar convosco um bocadinho da minha alegria e desejar-vos também uma quadra maravilhosa.
FELIZ NATAL, gente bonita!

domingo, dezembro 14, 2003

Humana culpa mea est

É a propósito da Culpa Humana (alguém me diz o que é?). Mea culpa, não saio o bastante. E mesmo todo o dia agarrada ao teclado nem sempre consigo saltar para aqui e escorrer linhas, assim ao jeito das vizinhas que se abeiram destas coisas webloguianas com uma frequência que me encanta,
A propósito de música e dessas coisas de oferta cultural, agora com tanta quantidade nem me apetece pôr o pé fora de casa. Longe vai o tempo em que o "Hair" justificava um saltinho à metropolitana Londres. Não que me não encantem sempre as actuações ao vivo. Mas há tanto que fazer...
Estive aqui ao lado, a ler as coisas das nossas Mentes. Dêem lá um pulo, que as pikenas têm sempre que dizer, e com sentido.

segunda-feira, novembro 24, 2003

O que é nosso jamais deixará de o ser

Há medos que são pura perda de tempo. Todos os medos o são, embora sirvam a função de nos ginasticar no combate à  inutilidade de muita coisa. A face positiva: se tiver medo, penso muitas vezes antes de fazer o que pode ser uma grande asneira. A face negativa: cedo ao medo e deixo de viver coisas importantes para mim.
Não estou aqui a filosofar sem causa definida. Estou a falar de uma espécie de medo que tenho lido em bloguinhos vizinhos. O medo de ser gay, homossexual, lésbica, etc.
Na altura em que conheci a minha primeira namorada, o medo de assumir era diferente. O isolamento era maior, não se falava tanto na homossexualidade como agora, não havia tantos espaços dedicados à comunidade, nem tantas notí­cias na comunicação social.
Mesmo assim, subsiste o medo. Olhando para trás, há mais de vinte anos, entendo que o medo fazia mais sentido nessa altura. Hoje, com toda a abertura já existente sobre o assunto, custa-me bem mais entender os medos de quem, mais novo do que eu mas com outras perspectivas, com outra abertura e outra informação, se deixa arrastar para esse território de ninguém que é ceder a preconceitos que são muito mais dos próprios do que dos outros.
Nunca se pode agradar a gregos e a troianos. Há sempre pessoas que não gostam do caminho que escolhemos, da forma como vivemos e por aí­ fora. Os nossos pais sofrem sempre a surpresa de descobrir que os seus filhos não são exactamente como imaginaram que podiam ser. Mas os pais são pessoas crescidas e perfeitamente capazes de lidar também com as suas escolhas e com as suas expectativas.
Haverá sempre pais que não gostam que os filhos sejam contabilistas em vez de médicos, que sejam divorciados em vez de exemplares pais de famí­lia, que vivam numa aldeia onde se estão a perder em vez de viverem em Londres e tirarem partido de todas as suas reais potencialidades. Haverá inclusivamente pais que gostariam que os filhos tivessem os caracóis louros dos avós, dos tios, da parte mais bonita da famí­lia.
Durante uma vida, haverá sempre razões de sobra para qualquer ser humano normal se sentir contrariado porque nem tudo lhe corre de feição.
Como haverá sempre quem prefira viver com intensidade as restrições impostas pela vontade dos outros e não o que a sua vontade dita.
Há vinte e muitos anos era mais provável que isso acontecesse. Mas hoje...?
Já há vinte e tal anos (nem estou a dar como exemplo homens e mulheres que, noutras épocas bem mais perigosas e menos esclarecidas, fizeram o que o coração lhes ditava) havia quem escolhesse agradar a si próprio, manter relações com pessoas do mesmo sexo, sair de casa, enfrentar a famí­lia, viver os seus amores em meios muito pouco favoráveis, sofrer o isolamento, a crí­tica e até o medo, mas ser feliz com quem amava.
Ser feliz e fazer aquilo que se acredita ser tanto um direito nosso como outro qualquer.
As paixões anti isto e aquilo também passam, as pessoas também se habituam a respeitar a coragem das outras e tudo volta ao normal, mais tarde ou mais cedo.
Se, por acaso, escolhemos não viver por medo dos outros, com que cara ficamos depois de tudo voltar ao normal?
A que propósito desperdiçamos os melhores anos da nossa vida, os maiores entusiasmos, a alegria de viver com quem e como queremos? E serão os outros tão culpados assim da nossa infelicidade? Que lhes démos em troca? O nosso medo? A nossa reluctância em exercer aquilo de que somos feitos? E que ganhamos? Mágoas, tristeza, saudade de coisas que não voltam?
A vida passa demasiado depressa para ser desperdiçada com medos. Os medos retiram-nos a capacidade de amar e são um duro ónus para a nossa felicidade. Quem é que quer chegar aos quarenta anos a pensar no que podia ter feito e não fez? No que podia ter amado e não amou? No que podia ter partilhado e não partilhou?
Porque é um investimento importante, o de partilhar com os nossos amigos e a nossa famí­lia aquilo que é vital para nós. E um investimento que produz sempre frutos. Que importa se alguns ficam pelo caminho? Com certeza não eram os melhores, com certeza não eram tão importantes assim, com certeza não éramos tão importantes assim aos seus olhos...
Mas a família, os verdadeiros amigos, não preferirão as verdades que lhes contamos, e até impomos, a assistir durante uma vida ao negro espectáculo da nossa cobardia? Às mentiras com que julgamos enganá-los? Quereria eu que uma filha ou uma amiga me mentissem todos os dias quando me falassem da pessoa com quem partilhassem a vida? Quereria eu ser responsável pela traição que implica esconder a verdade a familiares e amigos?
Se há vinte anos poucas eram as justificações que encontrava para mentir nesse aspecto, hoje em dia muito menos encontro. E é-me penoso assistir às dúvidas e receios de quem, como eu e muitos outros, tem tudo para fazer o que lhe vai no coração e desperdiça irrecuperáveis anos de vida em pequenas mentiras de que nunca se orgulhará e com as quais nunca ganhará absolutamente nada, muito menos o respeito de quem ama e por quem quer ser amado.

sábado, novembro 15, 2003

Something in the way she moves

Vi-te passar e havia qualquer coisa no teu movimento, a maneira como te deslocavas no ar... Vi-te passar e reconheci-te, sorri-te. Levaste a mão à testa, para protegeres os olhos da luz ao mesmo tempo que me retribuías o sorriso. Mesmo na sombra dos teus dedos, os teus olhos brilhavam. Gostei imediatamente do que vi. Acho que foi nesse momento que me apaixonei por ti. Sem me dar conta. Só agora, ao olhar para ti, me lembrei e te revi, naquele instante, ao sol, a pele dourada do verão, t-shirt branca batida pelo vento e essa forma de te moveres, de miragem solta pelo ar. Foi assim que te vi. Depois, Uma noite, enquanto dançavas, voltei a sorrir. Havia qualquer coisa no teu movimento. Uma batida, um ritmo, leve... Danças bem. Danças como o teu sorriso, com uma suavidade que me faz sonhar. Sonha comigo, leva-me a dançar. Ensaia comigo esse teu swing, arrasta-me no teu ritmo, faz-me rodopiar até sentir a tontura de correr para te acompanhar. Há qualquer coisa no teu movimento...

sexta-feira, novembro 14, 2003

Fora de brincadeiras

Agora, fora de brincadeiras, digam-me lá se acreditam na justiça. Não, não era bem isso que eu queria dizer. A justiça até existe, se lhe despirmos a carga moral que lhe vem associada e a encararmos como uma simples linha de causa e efeito. Senão, vejamos. Cai uma árvore e mata alguém que vai a passar. É justo? Se estamos a falar de justiça (a senhora dos olhos vendados), estamos a laborar em erro. Isto porque a árvore podia ser velha, ter caído uma chuvada que lhe minasse as raízes, estar a soprar um vento desgarrado quando a pessoa ia a passar e... Truz! Lá foi a árvore e a pessoa. Causa e efeito. É justo que uma árvore caia nessas circunstâncias, mate um mosquito ou uma pessoa. Que tem isso de extraordinário? Uma coisa: o facto de estarmos convencidos de que podemos eventualmente ter a capacidade de controlar o que se passa à nossa volta e sermos surpreendidos por uma destas. Isso sim, é extraordinário, uma vez que passamos a vida a constatar que não conseguimos controlar coisíssima nenhuma, nem o elementar. É, portanto, muita presunção nossa querer sobrecarregar a justiça com a moral ou qualquer outra estupidez parecida. Moral da história: a justiça existe, nós é que insistimos em não ser justos.

Amor-bondade

Há muitos anos houve alguém que tentou explicar-me as várias formas de amor que existem. Porque, no seu entendimento, o amor tem muitas faces, assim a modos como que um carácter diferente para cada pessoa.
Na altura custou-me a apreender o conceito e a finalidade com que me era transmitido. Temos destas coisas, lapsos de tempo impossíveis de evitar entre o input que nos fornecem e a sua compreensão, com diversí­ssimos factores condicionantes a ditar a velocidade a que processamos dados vitais e a capacidade de os pôr em prática.
Então, de acordo com a sábia apreciação dessa pessoa, o amor tem para cada um de nós, um carácter diferente, que acaba por ser muito parecido com a nossa maneira de estar na vida, sonhos e objectivos, a nossa forma de dar e receber (amor e outras coisas, que geralmente se dão e se recebem da mesma maneira).
O exercício do amor é, desse ponto de vista, um reflexo ou o prolongamento da nossa forma de nos relacionarmos com os outros em termos gerais. Ou vice-versa.
Na altura a coisa entrou-me a vinte e saiu-me a cem. Mas o essencial ficou de pousio para posteriores considerações. Hoje, em amena cavaqueira pela noite fora e a propósito das curiosas relações que mantemos pela vida fora, desencontros e incapacidades manifestas para entendermos o que nos ligou, no passado, a determinadas pessoas, veio-me a lembrança do que ouvi há tanto tempo.
Recordei uma expressão que me ficou como referência e sobre a qual nunca reflecti devidamente: o amor-bondade.
Amor que transpira bondade, uma qualidade que não se cultiva em todos os afectos. Vou repetir um lugar-comum: o amor só não chega. Há muito mais no exercí­cio do amor do que o amar e ser amado. Há um sem-número de outras peças que também devem encaixar-se para o mecanismo funcionar. Mesmo quando o encantamento ainda tem lugar, quando a paixão ainda lá está, quando se aposta o que se tem e o que não se tem, quando a desistência ainda é uma palavra impronunciável.
São muitas as formas do amor, da egoí­sta à ardente, da tranquila à turbulenta, you name it.
O amor-bondade é apenas uma delas. O meu favorito, em definitivo. O que nos resgata do amor-amargura, do amor-competição, do amor-inveja, do amor-infelicidade, do amor-cinismo, do amor-vergonha, do amor-vaidade.
A nossa viagem pelo amor tem vários apeadeiros. Todos eles com os seus encantos e desencantos. E chegar ao nosso destino com a capacidade de reconhecer o amor pelo qual gerimos todas as nossas expectativas e pelo qual também nos desencantámos é, para mim, a derradeira recompensa.
É por isso que o amor-bondade é o meu favorito. Não importa quantas vezes nos tenhamos desiludido e desistido. O amor-bondade está lá sempre, ele próprio também castigado, mas sempre disposto a voltar a acreditar, a entregar-se com generosidade e a receber com naturalidade.
Digam-me lá se também não votariam nele se vos batesse à porta...

sábado, novembro 08, 2003

A luz dos teus olhos

De mim para comigo repito, sensatamente, que a beleza interior é sempre maior e mais evidente que a exterior. Cliché. Porque a luz dos teus olhos torna-os ainda mais bonitos e tu, bonita por fora, mostras assim, simplesmente, quão bonita és por dentro. De mim para comigo soa de novo a advertência: mas a beleza interior... Ó, pára, consciência, que há sempre a excepção que confirma a regra! Essa excepção és tu, com certeza, bonita por dentro e bonita por fora. E a luz dos teus olhos, já imensamente lindos, ainda os torna muito, muito mais bonitos. Onde está a razão da advertência no teu caso? Não a encontro e não me importo e delicio-me consciente e feliz com a luz dos teus olhos e a tua beleza. Cautela, cautela, dizes-me tu, consciência. Para quê? Porquê? Eu gosto da luz dos teus olhos e não me reservo nesse gosto.

sexta-feira, novembro 07, 2003

Adoráveis tertúlias

Tenho andado a ler os vossos bloguinhos. Adoráveis tertúlias. às vezes comento, outras nem por isso. A maioria das vezes, por falta de tempo. Mas confesso que é mais fácil comentar os comentários dos outros sobre assuntos comentáveis do que assinar um. O motivo é, assumidamente (desculpem-me as mentes...), um grande tédio, mais uma grande mancha no meu carácter. Ou talvez não.
A minha provecta idade ainda me permite algum idealismo, entusiasmo, combatividade e noção de injustiça. Mas também me confere um tremendo cepticismo, falta de paciência para com o óbvio não resolvido, monótonos catecismos de ideais mil e uma vezes repetidos e por aí fora.
Não que não creia no valor implícito dos ideais e das guerras santas, desde que convenientemente despidos das enfermidades sociais e vícios de comportamento de que todos nos queixamos.
Mas, para mim, são as pequenas coisas que contam.
Ao fim de um dia cansativo, contrariar a preguiça e tomar café com amigos, falar até às tantas, redescobrir pequenos e mútuos encantos;
Preferir a leitura de um bom conto infantil à resposta urgente a um e-mail de trabalho;
Parar para ver um bom filme;
Ouvir um bom concerto em vez do telejornal;
Escutar as lamúrias infidáveis de um amigo em vez de despachar o jantar e a louça da cozinha;
Olhar para o mar e ignorar o telefone do escritório...
Hum... Tanta coisa absolutamente imperdível...
E a sensação de não haver mal nenhum em fazer o que realmente nos apetece em vez do que o que devemos.
Amo esta idade da lucidez, da ausência de culpa, do não me interessa o que os outros pensem, vive a tua vida e deixa-me em paz, abraça-me que amanhã sou capaz de já não te ter por perto para abraçar, etc.
Quero fazer já o que daqui a bocado pode ser impossível. Quero assegurar-me de que, se amanhã um autocarro me passar a ferro, fiz todas as coisas importantes que me lembrei de fazer.
Tenho esta noção recentemente adquirida que a vida são, de facto, dois dias e há que fazer muitas e muitas coisas boas para me sentir bem, para experimentar a felicidade pelo menos uns minutos todos os dias e ter disso consciência.
Quero que o meu mundo seja feito de muitos instantes importantes, saborosos, tranquilos. De mimos dedicados aos outros e dos que me dediquem a mim.
Quero fechar os olhos à noite sem medo de não acordar, porque entretanto estou a fazer aquilo que considero realmente importante.
Os vossos bloguinhos são importantes. Gosto dessas conversas em jeito das cartas que, num passado não muito distante, apareciam nas nossas caixas do correio e nos lembravam amigos separados de nós pelo tempo e pela distância.
Acho que os CTT deviam encomendar um blog-selo.

terça-feira, novembro 04, 2003

Uma questão de amores-perfeitos

You should be listening... Bem me avisaram.
Não prestei atenção, mas foi mesmo assim, uma questão de amores-perfeitos, um dia, ao amanhecer (ou seria ao entardecer?).
Cada um mais bonito que o outro e eu, cega, passava por ali vezes sem conta sem nada ver, sem prestar atenção.
Havia um, no entanto, que não era como os outros. Nem sei bem explicar-vos porquê. Se calhar não tem explicação.
Uma coisa posso, no entanto, dizer-vos: a esse vi-o e não houve forma de lhe fugir. Eu soube logo, aliás, tenho a sensação de sempre ter sabido - ali estava o meu amor-perfeito, "o" amor, perfeito...
Foi assim que tudo começou, em tons de jardim florido e delicados perfumes, com a tranquilidade de um amanhecer...
Nesse dia, o meu sono foi um sonho, ao lado de um amor perfeito.
Bons sonhos. Boa noite...

sexta-feira, outubro 31, 2003

Eterno fascínio

Há um híbrido absolutamente incontornável: o da mancha com o tédio. E passo a explicar: às manchas da alma fica-lhes a matar um certo tédio, assim a modos que como uma forma de estar neste mundo sem realmente estar, assim tipo Marthe Keller retirada que não resiste a aparecer em público de deslumbrantes véus coberta, para logo de seguida se escapar num táxi sem disfarçar o incómodo que lhe causa o espanto, a admiração e a curiosidade do vulgar transeunte. Percebem? Tipo: se realmente não quer que olhem, para quê os véus, para quê a chamada de atenção, para quê a exaltação? Percebem? Uma espécie de causa e efeito que afinal é mais efeito e causa, estão a ver? O quer-mas-não-quer que é, afinal, o objecto último do eterno fascínio que nos viciamos a provocar nos outros. Assim, também um manto de voluntárias manchas se sente compelido ao exercício de algum tédio para manter acesa a chama do fascínio. Teaser, teaser, teaser, gritava a corista do fundo do palco. The show must go on, reivindicava a prima-dona. Nonsense, nonsense, nonsense, deliciava-se o John Cleese, vivam os Monty Python, Aleluia, louvava o público (esta cena teve lugar num teatro perto de si, transformado num templo do Reino de Deus).

quinta-feira, outubro 30, 2003

entre dois cigarros e uma mancheia de sono

Difícil resistir à tentação de mais um cigarro quando se está à beira do sono...
Difícil não me sentir ainda mais manchas entre dois cigarros e o entorpecimento do sono.
Quem fala simplesmente com o seu deus antes de se deitar ainda não experimentou uma amena cavaqueira com uma qualquer entidade na terra de ninguém que precede o colapso do final da noite.
São ideias em catadupa e nenhum tempo para as praticar a esta hora em que o corpo já não resiste a mais nenhuma investida do turn off the light and come to bed please.
É o que vou fazer. (isto era só um teaser...)
Até já.

quarta-feira, outubro 29, 2003

Uma história de getos

Quando vivíamos em Varsóvia usávamos estrelas e triângulos na mesma roupa com que saíamos à rua, com que comíamos e com que dormíamos, com que fazíamos amor pelos cantos e com que íamos às latrinas. Uns trezentos e sessenta e cinco dias por ano, às vezes e seis. Quando vivíamos em Harlem não importava o que púnhamos em cima do corpo, porque os niggers têm todos as mesmas fuças, todos iguais, como os amarelos ou os escurinhos ou os inuits. Quando vivíamos em Johannesburg era preciso escolher os assentos os parques e as casas de banho porque os brancos que se enganavam tinham de ser multados por utilizarem as facilities que só podiam ser utilizadas por coloridos. Quando passávamos fins-de-semana com os tios-avós tínhamos de esperar junto das tias e das primas, no meio dos bordados e das canastras que os meninos acabassem de beber conhaque e de fumar charutos para virem dizer-nos como estávamos crescidas e bonitas e qualquer dia casadas com belos e bons rapazes que andavam na escola de tal e se empregavam bem e traziam com eles uma garantia de belos netos em papel timbrado com um selo que nunca estava à vista mas a que toda a gente prestava imensa atenção. Quando vivíamos em Washington DC e visitávamos o Capitólio e todas as fotografias de presidentes eram de homens muito feios, perguntávamo-nos onde raio estariam os retratos das mulheres bonitas, perfumadas e inteligentes. Quando vivíamos na fazenda os capatazes eram capazes de perceber imediatamente por que razão ladravam os cães e rolavam os olhos e emudeciam quando tentávamos explicar-lhes alguma coisa, por estarem mais habituados aos latidos do que às vozes ininteligíveis das mulheres dos patrões. Quando vivíamos nas grandes cidades cosmopolitas e havia surtos de gripe e consultávamos os médicos de ar desenpoeirado, tudo o que não fosse tylenol eram medicamentos para os nervos, uma afecção de que padecem inevitavelmente as mulheres e de que até os médicos desempoeirados ignoram a origem. A história dos getos é ccomplicada, vá-se lá saber porquê... No meu geto não há estrelas, triângulos, cores, roupas, tios, retratos de homens, medicamentos para os nervos. Há afectos que se dispensam parcimoniosamente na razão directa do que nos são dispensados.

terça-feira, outubro 28, 2003

Esse sorriso...

Uma das minhas manchas traz um sorriso agarrado.
Esse sorriso...
Às vezes, perdida entre o endiabrado puzzle das minhas manchas, esqueço-me de sorrir.
Mea culpa, digo eu, mas na verdade não me culpo. Quis a minha sina que me calhasse em sorte ter ao lado o teu sorriso e com ele me compenso de todos os momentos em que me esqueço de me deixar, simplesmente, arrastar pela corrente da tua alegria e do teu entusiasmo, da tua vontade de estar bem contigo e com os outros.
No meu manchado universo, esse sorriso com que me presenteias é uma bênção que talvez não mereça, porque não sorrio o bastante, porque só me lembro de o fazer no espelho da tua boa disposição. E depois? Mesmo que não o mereça, por que razão o desperdiçaria? É para mim e não está em mim fazê-lo mudar de direcção.
Venha então daí esse sorriso e o imenso prazer que me proporciona.
Até acredito que Deus, a existir, me levaria muito a mal que descartasse em sentimentos de culpa e de diminuida auto-estima o teu sorriso. Deus, a existir, leva a mal com certeza que nos queixemos com tanta assiduidade e depois nos neguemos a liberdade de aceitar e tomar o que generosamente nos põe à  frente do nariz.
Por isso, merecido ou não, o teu sorriso é meu. E com ele me comprazo entre as cedências feitas à tentação do mau feitio, do pessimismo e outros ismos de sinal negativo.
Com o teu sorriso resgato-me às marés negras, aos arrufos, à inveja, à  irritação, às mesquinhices das minhas manchas de carácter.

Olha, sorriso, anda daí, vem comigo até à  praia. Quero confessar-te, à  frente de uma chávena de café fumegante e com o mar como testemunha, o quanto me deleitas e me agradas e me transformas, até que nada mais exista senão a gostosa sensação de te ter por perto e a permissão concedida a mim própria de te fruir livre e despreocupadamente.

Deus, a existir, nunca me perdoaria se olhasse para o lado e evitasse o teu sorriso.
Acabo de detectar uma nova mancha em mim. Ando a coleccioná-las há uma vida e parece-me que ainda trago umas quantas de outras andanças. Mau sinal este de não nascer perfeita. Enfim, desfeita...
Esta mancha aponta para uma tíbia mancha na zona frontal do meu carácter: radial direita do hemisfério norte. O que significa que sou tragicamente afectada pela falta de coragem. Não em todas as situações, mas nas que mais notoriamente necessitariam de uma boa dose de "guts".
Ou seja, não me pronuncio quando o que ouço não está totalmente de acordo com o que penso, sobretudo quando alguma coisa grita cá dentro que devo meter acolherada.
Por exemplo, indicaram-me o www.assumidamente.blogspot.com, que fui a correr ver. Achei graça, li algumas coisas, sorri e, depois, espreitei os comentários e veio-me ao de cima a tibieza toda.
Apetecia-me crucificar alguns, riscar outros a vermelho com letras gordas, barafustar, dar nomes às coisas. Mas não fiz nada disso. Li simplesmente e reli e entediei-me. Por razão nenhuma em especial, a não ser a de pensar que há, de facto, quem façaa do comentário e da escrita uma espécie de artesanato da vida, o que nada teria de mal se não fosse apenas isso e nada mais além da total ausência de conteúdo.
Pronto, já estou a dizer mal de alguém e a atirar a minha mancha para as manchas dos outros...
Penitencio-me, mas não me arrependo. Afinal, isto é uma das minhas manchinhas...